domingo, 24 de maio de 2015

Canto Brasileiro, Paulo Sérgio Pinheiro * Antonio Cabral Filho - RJ

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Há algum tempo eu trabalhava numa
 livraria e notei que um cliente entrava,
 andava a loja toda, não falava com 
ninguém e, de repente, sumia. Seu
 comportamento mexeu comigo e 
passei a observá-lo a partir daí. T
odo dia, ele entrava na livraria, 
circulava e desaparecia. Saía repentinamente. 
Confesso que pass
ei a "escoltá-lo", como diz a gíria policial.
 Após algum tempo notei que ele estava 
"marcando" os livros que queria. Até aí,
 "no problem!" Mas um dia eu o flagrei: 
Num movimento brusco, ele pôs o
 livro Conceitos Elementares do
 Materialismo Histórico, de Martha
 Harnecker, embaixo da jaqueta 
us-top bordada com Jimi Hendrix 
de roqueiro e evaporou!
Confesso, também, que odeio ladrões, e
 me prometi "amassar o cano" dele ou 
"escrachá-lo", como diz o Vagner Montes.
 Dito e feito, no dia seguinte, mesma 
hora, mesma jaqueta, mesma rapidez, 
pegou o livro Vanguarda Europeia e
 Modernismo Brasileiro, meteu embaixo
 da jaqueta e partiu em direção à porta, 
mas a arapuca estava armada: Eu, Niltim
 e Fabrízio emparedamos na saída; quando
 ele notou, era tarde. Pedi-lhe o livro e
 perguntei se queria apanhar ali mesmo
 ou lá no depósito; ele rodou nos calcanhares, 
pôs o livro sobre o balcão e perguntou:
"Quê livro?!" e expliquei-lhe que se
 voltasse à livraria, iria entrar no cacete lá no depósito.
Passaram-se vários dias sem que ele 
aparecesse; então concluí que tinha
 funcionado meu esquema. Como gosto
 muito de artesanato, sempre ia passear 
na Feira da Praça General Osório, em
 Ipanema, na hora do almoço, gosto
 de escolher minhas peças bem detalhadamente
 e com o devido cuidado, para não ter
 dissabores a posteriori. Por isso, demorava
 muito tanto na feira como nas 
barracas onde parava. E foi num momento
 assim que visualizei uma lona estirada
 no chão cheia de livros, tendo ao 
lado, sentado numa cadeira de vime, 
nada mais nada menos, que aquele "nobre ladrão".
Aproximei-me bem devagar, na verdade
 para que ele notasse a minha presença. 
Ele é branco, magro, alto, usa cabelo estilo Robin Hood, 
e se levanto
u dizendo "assim não vale!", "Calma", 
respondi-lhe, "Eu só quero os que 
você roubou lá no meu trabalho." Aí ele
 rodou nos calcanhares do mesmo jeito
 que fizera lá na loja e eu não agüentei e 
caí na gargalhada, exclamando "Como 
você é ridículo, rouba de um lado da rua 
e vai vender no outro!" Mas aí vi o livro
 CANTO BRASILEIRO, do Paulo Sérgio 
Pinheiro, e perguntei-lhe aonde roubara
 este livro; "Como eu vou saber..." 
"Então eu vou levá-lo por pagamento
 dos que você já roubou na loja!" Peguei o livro e fui. 
Daí em diante, voltei mais assiduamente 
à feira, e passei a não hostilizá-lo mais,
 e em compensação ele não roubou mais 
lá onde eu trabalhava, tornei-me seu 
"cliente", e, passadas algumas décadas, 
lhe perguntei: J, você ainda rouba
 livros? "P... Cabral!"...
Hoje ele é um conceituado professor de 
história com diversos livros editados 
na área e, acima de tudo, meu amigo.
 Eis acima o livro que eu expropriei dele.
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